Cria e Recria
 
 
 
 

De  Lá

Você olha nos meus olhos e não me acha!
Estala os seus dedos para me trazer de volta?

Ah! Sim... agora posso contar!
Se meus olhos fossem janelas,
Por onde você pudesse,
Com bastante jeito,
Espiar os meus pensamentos,

Ia me ver num mundo diferente!
É que agora, eu não estou aqui,
Voltei, refiz os caminhos, estou lá,
No meu mundo antigo.
Tem de tudo lá,
Alegrias, mágoas,
É de lá que me vem esta dor de viver
Que ainda hoje trago em meu peito,
E deixa o meu olhar assim, erroso,
E cheio de tudo que vivi!
Lá, nenhuma outra pessoa pode chegar!

Lá, como diz o poeta,
O coração da gente dispara adiante do cavalo,
    [na esperança,
Ou marcha lento atrás do cavalo, no adeus!


Simpatia

Ali, bem junto às escarpas rochosas da cachoeira,
A gameleira umbrosa,
Com suas raízes atarracadas ao barranco,
Matava a sede na rápida corredeira.

O curandeiro jurou:
Disse que não era para eu duvidar,
Para minha hérnia de nascença sarar,
Era só fazer a simpatia!

Pôs o meu pé no tronco da gameleira,
Demarcou o tamanho com dois riscos,
E fez um corte profundo na casca da árvore.
Escreveu meu nome num papelzinho
E rezou com a mão na minha cabeça.
Abriu com seus dedos a ferida que fizera no tronco,
Colocou lá dentro o papel dobrado em três dobras.
Depois, juntou as abas da casca,
E amarrou o corte com  sete voltas de uma embira.

Curado eu não fui,
Mas pelo menos a sua parte a árvore fez:
Generosa, recebeu o meu papelzinho,
E selou com sua seiva aquela ingênua promessa.
Lá, o papelzinho foi reintegrado  à natureza,
Mas aqui, em uma fenda qualquer de minha mente,
Ficou guardadinho, do jeito que estava quando foi feito!
Eu não sabia... eram dois, os papeizinhos!


Tacho de Doce

Terminada a ordenha da vacas,
O leite dos latões é derramado no enorme tacho de cobre.
A mulher do vaqueiro atiça o fogo
Do rústico fogão do barracão
E logo começa a mexer o leite.
Nesta hora, não há menino que chegue perto,
Ninguém quer sobrar com a colher de pau,
Mexendo o doce e com os olhos ardendo por causa da fumaça.

Ficamos por ali... ajeitamos as varas de pescar,
Separamos os anzóis, e arrancamos as minhocas
Para servir de iscas para os bagres.
Até ajudamos a tratar dos porcos,
Descascando espigas de milho bem sequinhas.

Enquanto isso, a mulher mexe incessantemente o doce
Que já começa a se amorenar.
Nesse instante, espertamente,
Ainda estamos fora do alcance da voz dela!
Mas o tempo passa... a curiosidade se aguça e vamos
Nos aproximando devagar;
Falta pouco para dar o ponto no doce.

Pronto! O doce é arrematado e colocado em vasilhas.
Chegou a hora!
Armados de colheres,
Avançamos sobre o tacho ainda quente.
Quem olha de longe,
Só vê as nossas cabecinhas de meninos gulosos
Concentrados na ruidosa atividade
Que nenhum nós quer perder.
Satisfeitos, barriga cheia,
Estamos finalmente prontos para o dia!


No Tempo da Acauã

O olhar largado pela ampla janela da sede da fazenda,
Recolhe a desolação árida da imensa invernada.
Nas touceiras e mataréus,  zumbidos e silvos dissonantes,
Entorpecem os sentidos e detém o tempo.
A luminosidade do sol é tão estonteante
Que na estrada cascalhada que sobe a colina,
Tremulam miragens que parecem emanações vaporosas.
E, longe, lá pelas bandas dos angicos castigados pela seca,
Quase nos limites do capoeirão,
O grito lancinante da acauã ecoa,
E recupera a atenção dormente:

 Cauã, cauã, cauã, cauã....

Desde o seu pouso no topo de algum cupinzeiro,
A modo de um aviso triste,
A ave solta o seu grito:

 Cauã, cauã, cauã, cauã....

O calor infernal faz estralar o madeirame do telhado,
E no curral, a poeira misturada com o estrume seco,
Parece cinza quente de fogueira extinta.
No quintal, crepitam as cascas das árvores;
O rego-d'água lambe as raízes do limoeiro
Que sente o refrigério, e se desabotoa  em branca florada
Onde zumbem os marimbondos em incessante tarefa.
Mas lá do meio do pasto,
O bicho enche a gente de desânimo:

 Cauã, cauã, cauã, cauã....

Tamanha é a indolência  de sua massa calorenta,
Que o baita marruás quase nem abre os olhos
Enquanto o anu, com precisas bicadas,
Cata-lhe os carrapatos da barbela.
E longe, a acauã agourenta insiste:

 Cauã, cauã, cauã, cauã....

Inexoráveis, as horas do dia sufocante marcham
No monótono compasso do relógio da sala de jantar.
Ali, a velha tigela de porcelana pintada de flores azuis
Guarda a doçura cobiçada dos figos verdes
Atiçada pelo suave aroma da calda de cravo e  canela.
E no quarto da frente, o cheiro das bolas de algodão fiado
Mistura-se com o odor suarento dos couros dos arreios,
E constrói na mente um tempo irremediavelmente perdido,
Imagens vagas... viajantes, tropas, o sertão bruto;
Vestígios de eras nem sequer vividas.
E o telhado, com as suas telhas comuns escurecidas,
É tão alto que, ao se respirar fundo,
Uma sensação de frialdade percorre todo o corpo,
E por um instante, é possível até esquecer a secura e o calor.
Mas o grito da ave torna a machucar a alma da gente:

 Cauã, cauã, cauã, cauã....

Ai, como dói esse grito,
No meio dessa secura sem fim de agosto!
O tempo da acauã é outro, não é o da hora presente,
É aquele que ela constrói na nossa mente
E para isso, o grito dela traz de longe,
Muito longe, essa tristeza de não sei o que...


A Transição das Águas

A trilha e as águas... correm, correm.... e, junto à trilha, na imensidão da invernada, imponente, a palmeira de bacuri. O seu talo grosso escurecido, tem a marca das folhas perdidas no crescimento. O lodo verde lá no pé das folhas formado pela  umidade guardada das chuvas, as folhas bastas e verdinhas, os cachos de cocos se debruçando: a palmeira que é sinal de terra boa! Ninguém a corta pois desmerece a terra. O bacuri e a trilha; para sempre juntados nas referências da gente! O gado parece que anda em curvas de nível nas encostas das montanhas. Segue sempre as mesmas trilhas estreitas e sinuosas que contornam os bacuris caprichosamente. Eu costumava colocar o cavalo numa dessas trilhas e deixava-o seguir, rédeas soltas, até a sede da fazenda. Antes de chegar à curralama, a trilha passava pela rasura de um córrego que corria num leito rochoso.
A trilha passava  próximo de uma cachoeira, há poucos metros do tombar das águas que rebojavam entre as pedras sob uma enorme gameleira que se dobrava, pujante, sobre o riacho. O animal estacava no meio do riachinho para beber. Enquanto ele roncava a barriga saciando a sede, eu olhava as águas se precipitarem. Ah! quantas vezes eu ficava olhando, pensativo, o detalhe da água que chega para cair! Fixava o meu olhar bem no momento em que a água se curva para descer; ali estava o ponto crítico, o momento da queda. Estonteado, eu me via despencando no tombo das águas e sendo levado pela correnteza.
Aquela transição das águas sempre me impressionava. O riachinho vinha calmo, saía de um brejo de taboas de lodo amarelado e corria mansinho, mansinho. De repente, a queda inapelável! Luta com as rochas que lhe obstruem o caminho, agita no ar, como se fossem compridos chicotes, as raízes escuras que, presas aos troncos das árvores, se esgalham em múltiplas pontas sobre a correnteza.
Depois da descida e de tantas rochas vencidas no embate eterno, lá em baixo, se ouvia o som profundo e contínuo da correnteza principal que sumia, borbulhando, tragada pelo buraco que ela mesmo cavou ao longo dos tempos...
Mais adiante, um outro brejo onde às vezes eu ouvia cantar a saracura. A água ficava mansinha novamente, e como se estivesse saindo de um gozo enorme, corria satisfeita, se recompondo. Contida em novos limites, alisava o dorso e lambia, plácida,  os capins do barranco! Nem parecia a mesma água que esbravejara mais acima!
Aquelas águas que lá correram, ainda hoje passam por aqui! Ah! Como eu gostaria de poder cantar a descida daquelas águas! Acho que se pudessem, elas cantariam assim:

Escapando de um lago mais acima,
Preso entre as montanhas da serrania,
Eu vinha, corguinho manso,
Correndo lento por entre as palmas das taboas.

Mas a Terra que me dá a forma e a direção,
Decide que é chegada a hora da súbita transição;
Toma-me, na declividade de seu ventre,
E envolve-me num abraço estreito.
Nessa súbita posse que me arrebata,
Não tenho mais a mansidão da planície;
Divido-me em várias corredeiras que deslizam,
Acariciando a cabeleira de longas raízes escuras
Que as árvores soltam sobre as minhas águas
    [rápidas.

Agito minhas águas, espumo, contorço-me
Entre  as rochas que tentam me conter;
E no prazer da descida inevitável,
Lanço espirros d'água para o alto!
E sigo no abraço sôfrego com a Terra;
Ela aperta-me,  atrai-me para si,

E nos envolvemos no leito que nela cavei a fundo.


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