A Sequiosidade de Amar
Casa de Família
(Uma toada quase
banal)
Tardinha de janeiro...
No aperto de uma vontade esquisita de amar,
Sentindo precisão dos cheiros de
mulher,
Percorro os altos da cidade.
Meu carro ladeia no barro das ruas sem
calçar,
As luzes dos postes principiam a acender,
E brilham nas poças d'água
da chuva.
Espreito as casas...
Vou observando as fachadas encardidas de
terra,
Luz vermelha aqui, outra ali... vou indo,
Quero um lenitivo para as minhas
carnes.
Mas aquela casinha sem muro,
Com telhas comuns escurecidas pelo tempo,
Paninho de chita até mais da metade
da janela,
Luz vermelha não tem.
Logo acima do portal de madeira lavrada,
Está escrito:
"CASA DE FAMILHA".
As origens da gente falam alto,
E o respeito lhe é devido,
Não há como eu pôr
questão nisso.
A mocinha abre um fresta na janela,
Olha-me de relance e a fecha rapidamente.
Humilde e arredia, ela teme o barulho
do carro,
Coisa estranha que choca a sua pobreza,
Feita de um jirau de escorrer pratos lá
no quintal,
O sarilho de cisterna alisado do muito
uso,
E um pé de bucha na cerca de arame
da divisa.
Eu fico de longe, cismando...
Esqueço as mulheres e a rua,
E penso na moça daquela casinha,
Ainda guardada pelos cuidados do pai,
Velho e desanimado com a dureza da vida.
Quanto tempo vai demorar,
Até que o hímen rompido e
a amarga desilusão,
Levem ela lá para casa da luz vermelha,
Aquela que fica ali em frente,
Acenando dúbias facilidades?
Daqui há algum tempo,
Na mesa em que eu estiver,
Sentada na minha perna,
E com um braço sobre os meus ombros,
Ela vai abrir seus reservados para mim.
Se eu lhe der atenção, verei
até um retrato antigo,
O pai dela, na força dos anos, tirando
leite no curral,
Nos tempos da vida farta lá na fazenda
em que ela nasceu.
E se eu puder decifrar os seus olhos tristes,
Visitarei aquele universo de simplicidade,
O terreiro varridinho com vassoura de coqueiro,
O canto do pássaro-preto, a bacia
de milho para as galinhas,
As frutas, o bate-bate do monjolo, as festas
e rezas,
A fazeção de polvilho, os
olhos cheios de fumaça
De tanto mexer o tacho de sabão...
Uma história que quase ninguém
quer escutar,
Disparos de lembranças na noite,
Por causa de algum olhar diferente...
Antes que desconfiem e se assustem comigo,
volto a mim.
Desço do carro e entro na casa da
luz vermelha,
A mulher levanta-se do sofá e pergunta:
— Cerveja, meu bem?
Com um nó na garganta, respondo
só:
— Cerveja.
E deixo os meus olhos parados nela.
— Por que você me olha assim?
E com a desconfiança aumentada:
— Por acaso sabe donde eu venho?
— Sei sim,
Você nasceu numa grande fazenda,
Mas quando tinha pouca idade,
Seu pai, que trabalhava de agregado,
Veio tocado da fazenda pra cidade,
Pra morar em uma casinha bem humilde,
Como essa que tem aí em frente.
Sacudida no escuro de suas raízes,
Ela se alheia do ambiente,
Senta-se na minha perna,
Encosta a cabeça em meu peito e
chora mansinho;
Calo-me, apenas...
Ela esfrega o rosto com as mãos
para enxugar as lágrimas,
Tira da bolsa uma carteira surrada,
Com pouco, já vejo a foto e espero
a história...
Depois de tudo, as emoções
amortecidas pela cerveja,
Mas com os nossos sentimentos entrelaçados,
Vamos nos amar...
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