De Pedras e de Vento
 
 

O Hiato
(Manuel Bandeira, eu vi assim...)
Da rua se ouve e se vê o pranto.
Choro sentido, lamúrias, olhos inchados;
O estupor do impacto da morte
Que comprime o peito até sufocar.
Ali, no meio da sala simples,
Jaz, extinto, o pai de família.

Da sala até o murinho da rua
Há somente um pátio simples,
De terra batida, varrido com capricho.
Junto a porta, o pezinho de guiné,
Para afastar o mau-olhado.
De algumas roseiras malcuidadas,
Plantadas junto ao muro, as rosas despetalam-se
Sobre o solo vermelho.
E, do lado da rua, sobre o murinho descascado,
Debruçam-se os curiosos,
Gente que não quer ver a morte tão de perto.
É a sua morbidez que os mantém ali,
Olham, e dizem a frase comum destas horas:
— É o fim de todos nós.

Insopitado, o choro rompe limites e vai ao auge,
Gritos, desespero indizível,
É a hora da saída!
Durante a longa vigília,
A visão do morto,
Supria um estranha e vaga presença,
Era como se ele fosse voltar a qualquer instante,
Mas a separação iminente e definitiva
Está prestes a se confirmar.

Preparativos, movimentos pela sala,
O último olhar, a dor sem medida!
Os circunstantes se afastam um pouco
Enquanto a tampa do esquife é fechada,
Transferindo a visão do morto para as suas mentes.
Aprestam-se todos, vêm os carregadores,
Um irmão, o cunhado e dois vizinhos.

O cortejo sai, ganha a rua poeirenta;
Atrás, os gritos, os desmaios...
A viúva não agüenta acompanhar,
É amparada e recolhida à casa.
Separam-se; agora, ela seguirá só,
Não fora essa a promessa,
Jurada em frente ao altar há tanto tempo?
Mas naquela época, a frase soara distante...

O cortejo é de pobre,
Apenas umas 50 ou 60 pessoas;
O morto será conduzido a pulso até o distante cemitério.
O cortejo chega à rua recém-calçada de basalto,
Os passos, antes abafados na terra,
Agora ganham cadência,
Ressoam nas pedras do calçamento.
Lá vem... silenciando a vida,
Abaixando o volume dos rádios,
Interrompendo as conversas,
E mudando as faces das pessoas.
Cessa a alegria da rua.

Meninos emudecidos,
Alinham-se, curiosos, no meio-fio.
Materializada a morte,
Ante seus olhos,
Não sabem o que pensar
E fogem deles as palavras.
Sentem-na como algo distante de suas vidas,
Mas perto o bastante para
Interromper-lhes os brinquedos
E tirar-lhes a voz.

No armazém da esquina,
Junto ao balcão ensebado,
Homens bebem pinga,  jogam palitinho,
E falam de suas cotidianidades.
Agora, as portas de ferro descem, semicerradas,
Criando um hiato
Na despreocupação daqueles homens.

O ruído dos passos aumenta progressivamente,
Torna-se um intenso, lúgubre
E sinistro diálogo de pedra e passos que
Ecoa nas portas do armazém.
É o momento da passagem.
Os chapéus descem
E pendem de mãos cruzadas em baixo.
O cortejo passa...
Impossível desviar o olhar!
Os copos de fundo espesso ficam esquecidos no balcão;
Todos param. Nem um pigarro se ouve.

Agora, os passos começam soar mais longe.
O féretro toma distância,
E as pessoas, lentamente,
Reabsorvem-se em seus afazeres.
O rádio volta a soltar sua música banal,
Filtrada pelo pano de chita das janelas.
No armazém, as portas são erguidas,
Ninguém mais fala do morto; passou.
Aliviados da presença do Fim,
O jogo se reanima,
E o copo de pinga, esvaziado de um gole só,
Desfaz o nó da garganta.
 

Na calçada, um dos meninos
Ainda não voltou aos folguedos.

(Rua Jaime Gomes, uma tarde de 1959)





Pedra de Amolar

Pedra muito viajada nas correntezas,
Além do grão mais grosso,
Tens a forma ovalada,
E bem conveniente ao jeito de
Amolar o gume da faca virgem.

Percorreste comigo muitos caminhos
Desde aquele dia em que te arranquei,
Lá da tua loca no leito daquele córrego,
E te trouxe presa no alção do arreio.

É verdade, eu te tirei a lua,
O prazer do marulhar noturno das águas,
Aquele conúbio gostoso que alisou tuas bordas;
Tirei-te também a frieza neblinada das manhãs,
E o pisado cascalhoso dos animais que ali vinham beber.
Nem mesmo tens mais o prazer de sentir
O pouso de uma ave sedenta em teu dorso.

Em compensação pela minha ação,
Agora, toda vez que em ti amolo as minhas facas,
Me levas de volta ao mundo dessas coisas.
Esqueço-me do em redor de mim,  e enquanto lentamente
Passo a faca em tua superfície,
Afio também o gume cortante dessas lembranças,
(Sou pedra ou sou gente?!)

Ô diacho! Será isto recompensa ou punição?
Não teria sido melhor eu ter te largado pra trás,
Ou ter te perdido no trote do cavalo?
Terias ficado lá, caída na beira do estradão,
E eu seria, para sempre, livre das dores
   [de minhas recordações!


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