A Dura Face do Ser
O Crime
Sentado no meio-fio, olho a rua vazia...
A preguiça da tarde quente,
Parece que faz dormir
A rua da saída da cidade.
Àquela hora, nas casas quietas todos
ainda estão
Fazendo o quilo sonolento do almoço.
Na porta do barracão da máquina
de beneficiar arroz,
Homens fortes, sem camisa, descansam;
São carregadores de sacos de cereais
Que esperam a hora de pegar no batente.
Daqui há pouco, eles estarão
lá,
Arrumando os sacos de arroz em pilhas imensas
Que chegam até o teto do barracão.
No meio das pilhas,
A gente pode ver uma luzinha incandescente,
Empoeirada, fraca de tirar a esperança...
O cheiro das sacarias, a poeira que vem
Do beneficiamento do arroz,
A palha jogada na tulha para a alegria da
meninada
Que lá vai brincar ou caçar
as rolinhas
[que vêm ciscar a palha...
A máquina de arroz é um mundão
enorme!
Os corredores entre as pilhas formam um labirinto,
A gente pode até se perder ali!
Mas todo dia é a mesma coisa, não
muda nada,
A vida ali parece sempre igual!
Até cansa a gente de tanto saber que
o dia de hoje,
Vai ser igual ao de ontem.... será?
Mas o que foram aqueles estalos secos que ouvi
agora?!
São tão diferentes da barulheira
da máquina!
Essa, eu conheço bem.... além
disso, agora está parada!
O homem de paletó azul, calça
amarelada,
Chapéu de feltro de abas largas,
Sai lá da máquina... tem algo
na mão,
Olho seu rosto vincado e ele olha para mim;
Eu continuo ainda sentado no meio-fio...
Depois, ele olha para dentro da máquina,
Arreda o paletó e enfia uma arma na
cintura.
Afasta-se, passos firmes mas sem grande pressa,
Para a saída da cidade; ainda olhei
ele sumir na rua.
Por um tempo, ainda sinto o silêncio,
E a menos dos estalos, a rua ainda dorme,
como antes...
Só que agora, minha atenção
sente algo parado no ar... o que é?
Aí, os gritos e a agitação
que muda a cara da rua:
— Mataram o João Modesto!
Quem era o João Modesto ? Eu não
sabia quem era!
Mataram ele?! Ah... o homem que eu vi com
a arma na mão!!
Mas o homem já não está
mais à vista,
Foi-se, para os lados da saída!
Só agora me levanto... queria ver o
morto,
[mas não me deixaram!
Cercam a rua com cordas, perguntam,
[falam, perguntam, falam...
Mas a mim não perguntam nada não!
Ninguém me viu ali, caladinho no meio
dos curiosos,
E não sabem que só eu vi onde
foi o homem.
E não sabem também que meus
olhos de menino,
Enxergam tudo limpo! E bem limpo!
Mas, calo-me... para que falar?!
Eu só queria falar que não tive
medo dele não!
Vi a cara dele, mas não tive medo...
Era só isso que eu queria falar!
Mas não iam mesmo prestar atenção
em mim,
E alguém presta atenção
Em um menino de cinco anos?
Terno de Linho
Branco, de ferir a vista da gente,
Todo quebrado em dobras tremulantes,
Barras das calças redobradas, bem passadas
e rebatidas
Sobre os sapatos perfeitamente engraxados,
Assim é que deve ser um terno daqueles!
Se quiser, complete a indumentária
Com um largo chapéu Panamá!
Você bem sabe que
Gente importante anda assim,
Com um belo de um terno desses!
É gente que pode
Ferir,
Expropriar,
Corromper,
Viciar,
Estuprar a sua irmã,
Torturar a sua mãe bem na sua frente,
Pendurar você no pau-de-arara,
Castrar você, passar sal no corte,
E fazer você comer os seus próprios
testículos,
E depois, enterrar você meio-morto...
E a justiça, nem rela a mão nele!
Você sabe disso tudo...
Ou vai fazer de conta que não
sabe?
Sabe sim! Pois não foi o homem do terno
de linho
Quem meteu o seu pai na cadeia?!
Eu me lembro...
Eu vi os pingos grossos das suas lágrimas,
Manchando de tristeza a escadaria da cadeia!
O homem do terno de linho,
É poderoso ele mesmo, ou....
Serve a alguém mais poderoso que ele!
Sempre foi assim, e assim será!
Ou você vai reagir? Hein?! Vai?!
Vai querer levar uma tunda dos peões
dele?
O que é isso?! Faz 500 anos que você
não reage!
Logo agora, achou de se engraçar?!
Nunca se esqueça disso,
Olhe bem o homem do terno de linho;
Nas rodas de conversas com os donos da cidade,
Vez por outra, ele mete as mãos nos
bolsos
E sacode aquelas dobras do terno,
Só para intimidar os passantes!
Assunta, espreita as vítimas ao alcance
de seu poder!
A gente pobre da nossa cidade, já sabe,
Com o homem do terno de linho,
Quebrado em dobras tremulantes,
Não se brinca de jeito nenhum!
Fique longe dele... nem atraia a sua atenção,
Só de você, um zé-ninguém,
levantar os olhos,
Já é desafio, será a
sua desdita!
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