O Sabor do Pão



O Devir das Coisas

No tempo em que a vida estava toda à frente,
A pobreza da gente era feita de singelas mesmices.
Na hora do almoço, feito só de alegrias,
Eu vinha de minhas correrias pela rua,
E lá estavam, na chapa do fogão de lenha,
Aquelas panelas de ferro que vieram da minha avó;
Alimentaram-me, pois, antes de eu nascer!

E uma prateleira de cinco tábuas de madeira escura
Sempre bem lavadas com areia e sabão,
Era o que bastava para acomodar
Os pertences da arrumação da cozinha.
Os alumínios eram secados no jirau do quintal
Até estralar, brilhantes de ferir os olhos, ao sol da tarde.

A tesoura preta passou por inúmeras mãos,
Deu tantos talhes nos tecidos de tear,
Picou tanta coisa, durante tanto tempo
E agora cortava papel para os meus papagaios.

A régua de bálsamo que foi à escola com meu avô,
E tinha uma data do ano de 1895 entalhada à faca,
Chegou até a minha carteira do Grupo Escolar.

E na antiga caixa de cobertas, onde se misturavam
O cheiro do algodão cru e a essência da madeira de lei,
Uma caixinha de papel continha as nossas
   [mais caras lembranças.

Nossa vida era feita de coisas assim, sólidas, eternas,
Objetos vindos de tempos que nem nos dávamos conta;
Crescíamos com aqueles elementos à vista
De nossos olhos descuidados!

As coisas simplesmente essenciais bastavam-nos;
De mais nada sentíamos falta,
Mais nada queríamos trazer para casa.
Ah! Que saudade de quando eu não pensava em acumular!
 


Lavadeira

Humilde, ela chegava sempre
Pelo portãozinho do quintal.
Lá da rua a gente ouvia:
— Ô Siá, a roupa!
Era ela, a nossa lavadeira;
Eu corria abrir o portão
E sentia a mão dela acariciando-me cabeça;
— Ô Siá, este menino tá crescendo que nem chuchu!

A minha mãe:

— Estamos ficando velhas, Dona Rita!

Minha mãe oferece o café e
Indaga da família — e os filhos, como estão?
Ela lança os olhos para o alto,
Agradece a Deus pela saúde que ainda tem,
E conta suas agruras.
A falta que lhe faz o marido, morto há anos,
O filho maior, em alguma roça, trabalhando,
E os pequenos, com ela, agarrados na barra da saia;
— É a cruz que Deus deu pra gente, Siá— resigna-se.

Enquanto conversam,
Elas separam as peças de roupas,
No lençol aberto no chão;
As recomendações de sempre:
Esta ferve, esta não,
Aquela precisa quarar um pouco mais;
— Pode deixar Siá, volta tudo direitinho!

Ela coloca a pedra de sabão por cima da roupa,
Ata as pontas do lençol numa trouxa .
Em seguida, com esforço, leva-a à cabeça,
Que ela traz coberta com um pano de algodão
Para lhe conter os cabelos.
— Esta trouxa não cai não? — pergunto,
— Até hoje nunca caiu — ela me responde.
E cerra os lábios, mexendo as bochechas emurchecidas
Como se mastigasse o peso da trouxa de roupa!

Ela se despede de minha mãe e ganha a rua
Com a trouxa oscilando na cabeça, lá vai.
Esqueço o meu olhar naquela figura,
Que se apequena na distância que aumenta.
Com pouco mais, e só vejo a trouxa,
Que  desaparece no topo da extensa avenida.
Lá se foi. Mora nos altos, na saída da cidade.

E penso:
Ela, pobre, diabo,
Mora , no alto, na saída,
Eu remediado,
Moro bem no fundo do mundo!
Gente pobre mora sempre
Perto da saída da cidade;
Saída que nunca usam!
Mas essa proximidade,
Dá-lhes esperança.
Por isso, vivem!
E eu? Cadê minha esperança?




Pharmácia

A velha caixa registradora... tlim, tlim....
Sonorizando o dinheiro entrante sempre no mesmo ritmo,
Lá estava, no centro das atenções,
Com seu metal reluzente e todo desenhado.
Altas estantes, escuras,  cheias de milagres
Embalados em vidros compridos e tampados
Com uma rolha coberta com um papelzinho retorcido!
Bem lá no alto... o "Ferro Quina", pra consertar estômagos!

Do banco de madeira pesado,
Liso de tantas conversas compridas ali saboreadas,
Eu via o dente branco de jacaré
Pendente do chaveiro do farmacêutico.
O pharmacêutico! Que figura!
Usava sapatos marrons, testudos, brilhantes;
Tinha uma correntinha enigmática
Presa à larga cinta de couro marcada pela fivela,
E fazendo uma curva até o bolsinho do patacão
Que, em sua forma redonda e pesada,
Mostrava todo o tempo já deixado atrás de si!

Ecoa na pharmácia o ruído das patas de cavalo no basalto da rua,
As frases ficam paradas no ar, e a atenção se esquece,
Por um momento, no carroceiro de chapéu roto
Que passa com um saco de aniagem nas costas.
Histórias... quantas histórias eram ali contadas
Nas tardes que morriam na preguiça do poente!
(O menino orelhudo, de pés no chão,
Só ouve e assunta com a aprovação dos adultos!)
O futuro, nascente do rio lento que solta bolhas vindas do fundo,
Nunca bateria às portas daquela calma estagnada,
E a pharmácia estaria lá para sempre!
 (A velha Minas... o mundo, tudo!


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